Há muito, muito tempo, quando a ilha de Okinawa pertencia aos chineses e os okinawenses aprendiam técnicas de Kung Fu que mais tarde dariam origem ao Karatê (se não acredita, leia os livros de Ginchin Funakoshi), morava nessa ilha um velho mestre chinês que transmitia sua arte com muito desvelo e carinho.
Dentre os inúmeros discípulos desse mestre havia três que eram seus alunos prediletos. Desses três, um havia se dedicado exclusivamente às técnicas de luta com as pernas e se tornara muito famoso como "O Homem da Perna de Ferro". Outro gostava apenas das técnicas manuais e se tomara eficientíssimo no uso dos braços e das mãos, granjeando fama como "O Homem dos Punhos de Aço".
O terceiro não se especializou em técnica alguma, contentava-se em seguir plenamente os ensinamentos do mestre e dedicava-se tanto às técnicas de perna, quanto às técnicas de mão. Por não se ter especializado em nada, não era famoso como os outros dois e embora querido por seu mestre, permanecia na obscuridade e era pouco conhecido. Com o passar dos anos, o velho mestre vendo chegar o fim de seus dias, convocou o povo a ouvir suas últimas palavras.
Como era um homem probo e caridoso as pessoas de sua aldeia vieram ouvi-lo. Nessa sua última mensagem conclamou todos à prática da caridade e da fraternidade, incentivou-os a continuarem praticando o Kung Fu como forma de cultura física e recurso para defender a ilha de possíveis invasores. Em seguida fez vir à sua presença seus três alunos favoritos e apresentando-os ao povo disse-lhes que se um dia tivessem problemas
com algum mau elemento que ameaçasse suas vidas ou seus bens, confiassem a defesa da ilha a esses seus três discípulos.
Terminando de dizer estas palavras, expirou. No banquete que foi realizado após o passamento do mestre (os chineses comemoram a morte com festas e banquetes), foram dados lugares de honra aos dois lutadores famosos, pois seus feitos eram muito conhecidos e as canções e danças da ilha reproduziam muitas de suas histórias. O terceiro lutador conseguiu um lugar afastado entre os alunos menos conhecidos do mestre.
Os anos foram se passando e os dois lutadores famosos cada vez venciam adversários mais poderosos e mais e mais aumentavam a fama que possuíam. As crianças corriam atrás deles nas ruas gritando seus nomes; quando iam ao mercado os comerciantes lhes ofereciam presentes e dinheiro.Todos se sentiam honrados em hospedá-los e alimentá-los. O terceiro lutador continuou desconhecido. Todos os dias pela manhã abria os portões do quintal da casa do mestre, onde continuou a morar e recebia aqueles que o procuravam para aprender Kung Fu, ensinando-os com o mesmo carinho que costumava ter quando o mestre era vivo.
Às vezes um dos dois lutadores famosos, o "Homem dos Punhos de Aço" ou o "Homem da Perna de Ferro" vinha à academia e era recebido com muita alegria pelos alunos que os convidavam a ensinar suas técnicas prodigiosas. Os anos foram se passando e certo dia a ilha foi invadida por um bando de salteadores chineses chefiados por um bandido feroz, exímio praticante de Kung Fu.
Esse bandido atacava as aldeias, matava aqueles que resistiam, aprisionava os sobreviventes, arrancava-lhes as roupas, saqueava o que podia e em seguida incendiava as casas. Os sobreviventes, nus e humilhados, iam às aldeias próximas pedir socorro. De todos os lados chegavam as mesmas notícias - assassinatos, saques e incêndios destruindo as aldeias por toda a ilha. Então o povo se lembrou das recomendações do velho mestre e saiu à procura dos dois lutadores famosos.
Conseguiram encontrar o "Homem da Perna de Ferro" e pediram sua proteção. O "Homem da Perna de Ferro" era muito confiante, pois tinha vencido grandes adversários e tinha uma perna tão rápida que nenhum outro lutador especialista em pernas conseguia superá-lo; procurou o bandido e o desafiou para uma luta.
O povo estava com ele e confiantes em sua habilidade armaram-se de paus e pedras e cercaram o bando. A luta começou, o bandido enfrentava o "Homem da Perna de Ferro" e seus asseclas lutavam com o povo. O bandido lançou alguns golpes com a perna que foram prontamente defendidos pelas pernas e joelhos de seu adversário, que prosseguiu arremessando-lhe chutes tremendamente poderosos e praticamente indefensáveis. Sua técnica de pernas era tão superior que se dava ao luxo de florear, dando saltos no ar, giros, chutes repetidos com a mesma perna, etc.
O bandido era um lutador muito experiente e conhecia inúmeras técnicas do Kung Fu; adotou a defensiva e passou a observá-lo. Notou que seu adversário mantinha os braços quase abertos para melhorar seu equilíbrio de pernas; notou também que ele executava até as defesas com os pés, canelas e joelhos. Lançou-se à frente e encurtou a distância até poder tocá-lo com os punhos, iniciando um ataque poderoso com golpes simultâneos de punhos, cotovelos, calcanhar, mãos e pontas dos dedos.
Atingido por essa saraivada de golpes o "Homem da Perna de Ferro" tentou se afastar para poder ter espaço para desferir seus chutes poderosos, mas quanto mais se afastava mais o bandido se lançava para a frente encurtando a distância e atingindo-o pesadamente com as mãos. Em desespero tentou golpes com joelhos e pisões curtos, mas os golpes com os punhos eram muito rápidos e atingiam-lhe a cabeça, esmagando-lhe as orelhas, os lábios, os dentes, o nariz e os olhos.
Tentou se afastar mais rápido para poder chutar, mas quando conseguia se afastar o bandido o empurrava desequilibrando-o e prosseguindo com a saraivada de socos. Dessa maneira foi acuado contra o canto de uma casa onde, impedido de usar as pernas, foi surrado até morrer. Quando o povo viu que o famoso "Homem da Perna de Ferro" tinha morrido fugiu apavorado, com o bando em seus calcanhares. Diversos mensageiros saíram em busca do "Homem dos Punhos de Aço" e contaram-lhe o que tinha acontecido suplicando-lhe que os auxiliasse.
O "Homem dos Punhos de Aço" sorriu com superioridade: - Então o "Homem da Perna de Ferro" havia sido vencido por um bandido especialista no uso das mãos não é? Ninguém era suficientemente bom com os punhos para enfrentá-lo. Havia vencido dezenas de adversários que eram exímios lutadores com as mãos, venceria o bandido com facilidade... Quando acharam os bandidos a luta recomeçou. O bandido encarou seu adversário e imaginou que como o anterior este também era especialista no uso das pernas, resolveu acabar logo com a coisa, encurtando a distância e partindo para uma série de golpes de punhos.
O "Homem dos Punhos de Aço" adorou essa aproximação, o bandido estava vindo de encontro a seus punhos poderosos, capazes de varar uma parede de pedras. Cada soco que o bandido lhe dava era habilmente defendido e desviado. Mas o bandido era um lutador experiente e logo percebeu que jamais venceria aquele oponente apenas desferindo golpes com seus punhos. Começou a guardar uma certa distância do adversário, afastava-se o suficiente para que os punhos do "Homem dos Punhos de Aço" não pudessem atingi-lo.
Quando o "Homem dos Punhos de Aço" tentava encurtar a distância, esquivava-se e fugia do ataque linear. Quando não conseguia evitar o encurtamento da distância tentava apresar os braços do adversário e aplicar-lhe torções. Começou a observar atentamente o seu jogo de perna e notou que nunca desferia golpes com as pernas, nem possuía um jogo de pernas eficiente. Começou a usar suas pernas contra ele e em determinado momento conseguiu derrubá-lo com a rasteira circular posterior.
Assim que o "Homem dos Punhos de Aço" caiu no chão o bandido pulou em cima dele e aplicou-lhe uma chave de braço. O herói nunca tinha lutado no chão, e não sabia o que fazer, tentou ainda uns socos desesperados mas teve seu braço direito deslocado à altura do cotovelo, em seguida foi asfixiado pelo bandido que o matou. Ao perceberem que o "Homem dos Punhos de Aço" havia sido morto o povo debandou apavorado.
O povo da ilha não sabia mais o que fazer, havia ainda o terceiro aluno do mestre falecido, mas se os outros dois que eram verdadeiros heróis, famosos por suas lutas, nada haviam conseguido contra o bandido, o que conseguiria o outro lutador que era apagado, nunca havia realizado grandes feitos, não possuía técnicas mirabolantes e nem havia vencido grandes adversários?
E nem se incomodaram em chamá-lo. Enquanto isso o bando de facínoras progredia em seu avanço devastador, arrasando as aldeias por onde passavam. Mas os rumores das atrocidades cometidas pelos bandidos e a notícia da morte dos dois heróis do Kung Fu chegaram ao terceiro lutador. Certa manhã reuniu os alunos da academia e disse-lhes:
"- Hoje nosso treinamento será diferente. Peguem as armas e sigam-me."
Não tiveram que andar muito para achar os bandidos. A luta começou rápida e não tardou para que ambos os chefes se enfrentassem. Quando o bandido começou a lutar com ele imaginou qual seria a especialidade de seu adversário - pernas ou punhos? Arriscou alguns chutes e estes foram habilmente defendidos e revidados à altura; resolveu mudar de tática, lançou alguns socos e estes também foram defendidos e devolvidos. Lançou-se à frente tentando encurtar a distância, mas foi rechaçado por uma saraivada de golpes certeiros que penetraram em sua guarda pelo centro de seu corpo.
Tentou agarrar as mãos do adversário e ficou surpreso em descobrir que ele era liso e sabia esquivar-se com admirável habilidade. Começou a socar com força, mas o lutador ao invés de defender formalmente seus golpes desviava-os para fora com hábeis movimentos com os cotovelos, somados a um sutil giro de cintura. O bandido reparou que seu adversário completava seus ataques com apresamento de seus braços seguidos de revides formidáveis.
Outro detalhe interessante é que cada braço que executava uma defesa estava lançando um ataque quase que simultaneamente. Tentou dar alguns chutes para aumentar a distância mas suas pernas eram bloqueadas antes mesmo que os pés saíssem do chão. O lutador bloqueava soltando golpes curtos com o calcanhar sobre a coxa, joelho e canela do bandido. Tentou aplicar um golpe de torção mas o rapaz esquivou-se num giro completo pelo outro lado e acabou por prender-lhe o pulso direito com mão de ferro.
Quando puxou o pulso a fim de se livrar, o adversário dobrou o pulso arremessando o cotovelo da frente e caindo sobre ele com todo o peso do corpo. O impacto no peito foi enorme e quebrou várias costelas, fazendo com que sentisse gosto de sangue em sua boca. Ainda tentou ensaiar vários golpes, mas cada vez que arremessava um ataque era atingido na área de seu corpo que estivesse menos defendida, começou a cansar-se, a abaixar a guarda e a apanhar feio.
Não demorou muito tinha deslocado o ombro e o tornozelo, logo mais desabou ao chão e não mais conseguiu se levantar. Quando os outros bandidos viram que o chefe estava fora de combate, perderam o espírito da batalha e da melhor forma que puderam trataram de fugir. A essas alturas o povo começou a se juntar em volta do lutador e de seus alunos e fizeram uma festa para comemorar a expulsão dos bandidos e a descoberta de um novo herói do Kung Fu.
Fonte: O "Espírito Marcial" - Marcos Natali (Editora Ediouro)
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